Racionais MCs, masculinidade e o choro de Jesus.

Matheus Morais Inácio
6 min readNov 14, 2018

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O grupo de rap Racionais MCs tem tomado conta de boa parte da minha consciência e percepção de realidade nesses últimos tempos, principalmente nesse semestre, já que meu TCC tem base em parte da obra do grupo, apesar da ampliação do olhar ser muito maior que o acadêmico.

Racionais e o próprio rap foram postos na minha vida, ainda quando criança ou pré-adolescente, como músicas proibidas de ouvir na minha casa, onde pelo discurso intenso, cru e necessariamente agressivo sobre o tecido de realidade que permeia os pobres, pretos e favelados eram demais para ouvir. Era bruto, visceral e real demais. Era “música de bandido”, como diziam meus pais, apesar de viver realidades um tanto parecidas, sendo eu e meu pai, pretos, família pobre dum bairro onde a divisão de no alto, vive a galera pobre e logo no bairro debaixo ter, literalmente, casa com heliporto, numa cidade que, hoje em dia, deve ter por volta de uns 50 mil habitantes.

Apesar disso, não é uma mentira o que meus pais diziam, de fato, há aspectos de uma “música de bandido”, em que é mostrado de forma primorosa, como uma fotografia em áudio, como era e ainda é — com nuances de diferenças pequenas e insuficientes demais — a vivência naquele contexto. Drogas, violência, misoginia, brutalidade, assalto, machismo, morte, racismo. A demonstração clara de como o Brasil permitiu e permite o genocídio pobre, o genocídio negro, com a negligência do estado em relação a esses, na cultura colonizada e encrustada na mente submissa da maioria dos brasileiros, importando e engolindo com um sorriso os piores e nojentos gostos europeus. Nascido e criado num ambiente selvagem, há de se ser selvagem, como diz Brown em outra música de uma beleza sublime, sendo essa “Negro Drama”: “Vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal”.

O discurso no rap vem como socos na cara em sua maioria, tomando a expressão poética e afogando a mente de quem ouve atentamente, contando histórias como elas são. Pesadas demais, conscientes demais, reais demais. Raramente ficção.

Mas não só.

Jesus Chorou é uma música do álbum “Nada como um dia após o outro dia”, lançado em 2002, que veio após o impactante e genial “Sobrevivendo no Inferno”, merecidamente tido como obra prima do grupo, do rap e da música brasileira em geral — apesar do Brown não gostar muito — e essa mesma música, desse mesmo grupo, nesse mesmo contexto, fala com uma bruta delicadeza e maestria sobre fragilidade, angústia, choro, frustração, tais sentimentos explícitos de uma forma que beira o íntimo.

A música é iniciada com sons de trovões, chuva, vento, impondo uma atmosfera melancólica, levemente aterrorizante e, posterior a isso, entra a voz de Mano Brown declamando uma poesia, apenas com os sons antes apresentados e a voz, perguntando “O que é, o que é?”, descrevendo uma charada, dando características de algo, algo que inicialmente soa óbvio, mas, após alguns versos é notado um óbvio esquecido.

Charada que ele mesmo responde no decorrer da poesia, deixando cristalizado que é sobre lágrimas, não só lágrimas num geral, mas suas lágrimas.

Nessa poesia-prólogo da música é visto um tipo de vulnerabilidade e fragilidade de um homem que soa incomum perante o imposto o goela abaixo do machismo e o patriarcado. Mas não só um homem comum. Um homem preto, da periferia e do rap.

A masculinidade num senso geral se tornou algo extremamente bizarro e tóxico no decorrer da história, o homem como ser de valores e costumes em sua maioria falhou, é nítido essa visão, sempre fora algo problemático mas tiveram que cuspir na nossa cara para que um entendimento, por menor que seja, começasse a transpassar esse casulo escroto que foi criada culturalmente para e pelos homens.

A masculinidade é frágil demais. É bebido da ilusão de ter uma armadura firme e reluzente, quando, na verdade, não é diferente de um tecido fino, rasgado e feio.

Isso pesa ainda mais no homem preto, vindos de uma história num país extremamente escravocrata, onde para se ter fio de dignidade foram preciso morrer, literalmente, milhões de negros e negras, foi dado sangue e tripas para isso, foi necessário selvageria, agarrar com unhas e dentes para que direitos conquistados. Dos grilhões para as correntes invisíveis, do capitão do mato a violência policial, do tripalium torturante a falta de oportunidade de trabalho, do antigo “cale-se ou morra” ao novo “cale-se ou morra”.

É mais que compreensível e quase necessário criar uma crosta frente a isso. A crosta que é dado desde o nascimento é: Ser forte, ser inabalável, ser grande, ser foda, ser homem. E ser preto, em sua maioria, é ter que ser mais ainda em tudo. Ser mais que homem.

E com isso, é confessado “E eu que me julguei forte, eu que me senti, serei um fraco quando outras delas vir” e versos depois “Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?” num poema em meio a tempestade, terminando o poema com: “Diz que homem não chora? Tá bom, falou.”

A batida inicia e o canto é posto para cantar.

Vocais inteiros feitos por Mano Brown, usando diferentes tons de vozes e interpretações para fazer outros personagens no enredo e também se colocando como personagem. Embala os que ouvem num momento íntimo de dúvidas e desesperadas “O que fazer quando a fortaleza tremer e quase tudo ao seu redor melhor, se corrompeu?”, angústias de tirar o sono, “Durmo mal, sonho quase a noite inteira. Acordo tenso, tonto e com olheira. Na mente, sensação de mágoa e rancor, uma fita me abalou na noite anterior.”, nos mostrando a conversa que o abalou a ponto de deixar tonto, notando mágoa e rancor nos sentimentos que é uma conversa que tiveram sobre ele, o personagem, colocando características que não corroboram com o que ele percebe de si, a ponto de ele desabafar: “Não entende o que eu sou, não entende o que eu faço, não entende a dor e as lágrimas do palhaço.” para logo depois falar sobre os ensinamentos da mãe e expressar o amor por ela.

Pergunta: “Cadê meu sorriso? Onde tá? É, quem roubou?”, chegando numa resposta ampla, sólida e triste, dizendo “Humanidade é má”, ilustrando ainda mais dizendo que até Jesus chorou na sentença seguinte.

Jesus, símbolo e imagem de um conhecimento massivo quase incontável. Para os que creem: O filho de Deus, o messias, o santo, o salvador, o todo-poderoso, a representação do bem, o que se sacrificou por nós. Absolutamente o absoluto. Ainda assim: O homem. E mesmo esse homem, mesmo o filho de Deus chorou. Perante a imagética de Jesus, do símbolo religioso e moral, do Deus que quis ser homem, tomado, muitas vezes, como ente incriticável, Mano Brown talha com as palavras na música uma constatação simples: Se até Jesus chorou, que homem sou se não chorar ou se não puder chorar?

Continua a música dizendo que ele é seu próprio inimigo, que as lembranças más vêm e os pensamentos bons vão enquanto a chuva cai lá fora e agora, sem qualquer tipo de interpretação diferente, deixa explicito o pedido de ajuda, dizendo de forma expressamente concreta e literal: Me ajude, sozinho penso merda pra caralho.

Segue o canto e ao final da música diz a frase “Chora agora, ri depois” me fazendo entender como que num conselho de acalento, de identificação, numa frase que é como uma mão ao ombro dizendo que tudo bem chorar e, logo após, relembra e repete algumas vezes: “Aí, Jesus chorou” até de fato o término da música.

Há uma desconstrução de imagem e de personagem que não só mostram situações e sentimentos, mas mostram o âmago de um ser humano. Ser humano esse que tem consigo o estigma carregado de ter uma imagética bruta e forte, junto a própria postura e os discursos incisivos, ainda mais dentro do rap que, desde sua eclosão, sempre fora dominado por homens e pelo machismo — louvai as minas do rap, desde Stefanie até Drik Barbosa e muitas mais — além da própria performance comum aos artistas de rap que acompanham o discurso. Também como homem, homem preto que, em distintas situações e vivências, é esquecido que sente dor e os sentimentos que amarguram a existência humana. No cerne de toda a música, num resumo cretino, percebo que antes de tudo, ali está um humano.

Pois é, como dito: Diz que homem não chora?

Tá bom,

Falou.

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