Os Corpos-Políticos-Potentes-Presentes: Erica Malunguinho e Erika Hilton.

Matheus Morais Inácio
8 min readDec 9, 2020

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Antes de qualquer coisa, assim como um prefácio ou um prólogo, não tem como eu não iniciar fazendo uma ode, trazendo a lembrança, a presentificação de um nome, um corpo: Kátia Tapety.

Kátia Tapety.

Kátia Tapety foi a primeira mulher trans a se eleger a um cargo público em solo brasileiro, no interior do estado de Piauí, em Colônia do Piauí, cidade emancipada de Oeiras. Eleita em 1992, 1996 e 2000 para o cargo de vereadora; de 2001 a 2002 foi presidente da câmara municipal e em 2004 foi eleita vice-prefeita tendo em sua chapa mais de 60% dos votos

E por que eu não começo desde Kátia? Justamente porque quero dedicar um texto único a esse ser que é fabuloso e demonstra isso no documentário Kátia (2013) onde a documentarista Karla Holanda acompanha Kátia em seu cotidiano. Há muito o que se falar sobre Kátia Tapety em nuances e especificidades que demandam espaço único, ainda que pelo foco ou didatismo, mas, ainda assim, é de uma humanidade demasiada.

Isso é importante.

Com meu pedido de licença a senhora Kátia Tapety, começo então pelo meio e, portanto, por parte da máxima do presente: As Eric/kas.

Os tempos vividos na contemporaneidade são não só de uma única crise, mas de variáveis crises, essas que vão do cunho cotidiano até o existencialismo em seu cerne filosófico e, como numa queda de incontáveis peças de dominós, consequentemente essa crise é política. Pra desenhar melhor as palavras postas nesse texto, usufruo da definição de crise advinda do âmbito da saúde, largando, por um momento, a definição vinda do socioeconômico que, provavelmente, seria a ligação mais comum, pois, afinal, esse texto, em seu alicerce, é um texto político e sobre política.

Significado de Crise

substantivo feminino

Mudança brusca produzida no estado de um doente, causada pela luta entre o agente agressor e o mecanismos de defesa.

Tomando a ousadia bruta de tentar concatenar um conceito tão amplo numa universalidade, digo: Crise é um fenômeno de aviso, em que esse aviso se baseia em “algo não está certo, portanto, há um transbordo (quase) incontrolável de uma necessidade urgente de mudança”

Por que, afinal, todo esse papo de conceituar o que é crise? Pois é, há uma convicção errônea do que significa “ter uma crise” em que a crise é compreendida como algo ruim, péssimo, agoniante e, de fato, é um fenômeno impactante e angustiante, todavia, como dito, crise é um aviso de que algo precisa mudar, é um apontamento em sua máxima, um aviso gritado, por conseguinte, então, se compreendemos crise como um aviso e não uma violência direta ou pura angústia, podemos de dizer que crise é saúde.

Trazendo a analogia simplória de um corpo biológico doente (sociedade) podemos dizer que os corpos — em sua totalidade — democraticamente eleitos de Erica Malunguinho e Erika Hilton são a confirmação que, sim, nossos mecanismos de defesa ainda existem, vivem e lutam, logo, há chama quente que, indubitavelmente, queima em esperança.

Erica Malunguinho.

Erica Malunguinho (PSOL) é uma mulher preta, trans, nordestina, mestra, educadora, artista plástica, criadora do quilombo urbano Aparelha Luzia e, aos 36 anos, tornou-se a primeira mulher trans a ser eleita, no fatídico e cansativo ano de 2018, a deputada estadual na maior cidade da América Latina, São Paulo.

Erika Hilton (PSOL) é, com suas semelhanças distintas e distinções semelhantes, uma mulher preta, trans, periférica e, aos 27 anos, tornou-se, em 2020, a primeira mulher trans a ser eleita como vereadora da maior cidade da América Latina, São Paulo, depois de ter composto a Bancada Ativista (PSOL), movimento político criado em 2016, como co-deputada estadual componente do movimento, tal qual, teve vitória também no fatídico ano de 2018.

Para além do discurso político, das proposições, da intenção de reconstrução e reformulação social e até mesmo da revolução — das quais quero deixar explícito que compartilho — venho discorrer pra além da oralidade política que é expressa por essas mulheres, venho a discorrer sobre os inúmeros discursos grandiloquentes que trazem esses corpos ocupando — democraticamente, sempre bom frisar — o núcleo da política brasileira* e que fazem a tentativa de hegemonia direitista-branca-conservadora ficar desestabilizada ao compreender a potência e, portanto, as possibilidades que são postas, pois, não se enganem: eles — a direita — sabem disso e é bom que eles saibam.

Trago aqui uma fala de Erika Hilton em entrevista para o El País:

“(…) Significa que outras como eu não conseguiram romper com a miséria que a sociedade impõe contra nossos corpos. Estou aqui para romper com essa miséria e normalizar a presença de nossos corpos nos espaços de poder. Que cada vez mais corpos pobres, negros, transviados e favelados cheguem aqui, para que este lugar tenha a cara do povo. O povo não é essa minoria branca, rica, cisgênero e heterossexual”

Realizar a compreensão de que esses corpos compõem os lugares políticos que tecem os rumos político-sociais-econômicos-etc. de um país, a meu ver, é uma resposta substancial a uma pergunta crucial que o filósofo holandês Espinosa faz: “O que pode corpo?” e ver essas mulheres em tais posições me relembram, frente ao cotidiano estado letárgico e apático que, na verdade, o corpo pode pra caralho.

Nos últimos anos, junto ao meu trabalho de pesquisa sobre hip-hop, negritude e racismo, vem de mãos dadas a compreensão do movimento trans — que quer queira, quer não, apesar de estar na sigla LGBTQI+, tem suas especificidades muito distintas e unas — e há de ser feita uma afirmação crassa aqui, para não deixar aberto a interpretações, pois, falo de certezas:

Não existe movimento ou militância preta e antirracista que não seja antitransfobia. Não existe. Se não, não passa de uma afroconveniência. Não existe porquê estamos falando sobre corpos nascidos e criados frente uma sociedade que predestina ao sofrimento e a opressão simplesmente por existir.

Convivemos com genocídios cotidianos impulsionados e intencionados pelo Estado e isso não é novidade pra ninguém. Pra validar o que é dito, trago dados: A população preta é morta, tanto no sentido biológico como em todos os outros sentidos, a mais de 200 anos. O Brasil é o que mais mata trans e travestis no mundo e 82% das pessoas trans que são assassinadas são pretas.

Deu pra sacar? Fechou a conta de como não faz nenhum sentido tentar desassociar e desmembrar em polos diferentes? É claro há distinções nas lutas, obviamente, todavia, o cerne disso tudo são os mesmos, que é: Sobreviver e viver.

Todo e qualquer movimento emancipatório e/ou revolucionário deveria prestar atenção no que o movimento trans diz, age e expressa, pois, a meu ver, há muito a se aprender num sentido político-existencial com as pessoas trans em geral — um salve a Duda Salabert eleita em Belo Horizonte para vereadora e Thammy Miranda eleito como vereador em São Paulo, entre tantas outras pessoas trans que foram eleitas no Brasil — onde a luta das pessoas trans — incluindo as pessoas não-binárias — tem como ponto chave o que eu chamo de “afirmação do não”, onde é de uma necessidade do respeito a autenticidade da existência que nasce revolucionária, o “não” vem desde o primeiro momento de gênese, onde há uma negação do que é imposto porquê aquilo que é imposto não é sobre ser, mas, sim, sobre aquilo que querem que sejam em que símbolos dessa imposição tem de ser aniquilada.

Há uma afirmativa existencial e revolucionária em renegar um nome que violenta e não contempla essas seres. Há uma afirmativa existencial e revolucionária em renegar uma performance que é premeditada devido ao meu órgão genital. Há uma afirmativa existencial em não ser definido se tenho um pau ou uma buceta entre as pernas. Há uma afirmativa existencial e revolucionária em continuar sendo um ser vivo que vive. Há uma afirmativa existencial e revolucionária — que pra mim, é o brado mais grandiloquente — em negar que a biologia e fisiologia desses corpos define quem é e, consequentemente, há uma afirmação máxima — dessa vez, de fato, afirmativa — e revolucionária de ser-no-mundo que é a de potência e possibilidade e isso é, além de necessário, incrível.

Essas afirmativas mantêm vivo quem quer viver. Enxergar essas mulheres dentro da política brasileira, usando da definição crise dita acima, é perceber que os mecanismos de defesa ainda funcionam, logo, esse corpo revolucionário e progressista que é composto por diversos corpos que luta contra a política da morte não morreu e nem vai, muito pelo contrário, está vivo e vive e da vida que se gera mais vida.

As Eric/kas, assim como outras mulheres trans pretas, como Kátia Tapety, Linn da Quebrada, Monna Brutal, Jup do Bairro, são personificações de potências de vida, vida essa que está longe de ser definida por imposições feitas por outrem, digo vida no sentido mais vívido possível, é fogo que alimenta a brasa. É a percepção que há, sim, libertação e que essa libertação não é utópica, é complexa, doída e um tanto nebulosa ainda, mas é possível.

Termino, então, com uma fala de Erica Malunguinho em entrevista a ALESP:

A nossa luta é pela desconstrução das violências estruturais, e sabemos que elas estão alocadas em determinados grupos. Esses fundamentos não são pautas e não são recortes de uma sociedade, são de raça e de gênero. É uma expectativa do sonho, realista, de que a gente projeta neste trabalho a desconstrução do racismo, do machismo e da lgbtfobia, uma vez que a gente entende que a desigualdade está alicercada neste lugar. Eu acho estranho quando as pessoas falam “por moradia, por educação” (…) Isto não funciona, porque atende gente específica, e a maioria destas pessoas que são atendidas pelo sistema público são negras, que foram empobrecidas. indígenas; em grande parte, mulheres. Desconstruir o racismo é desconstruir a desigualdade. Acho ruim quando as pessoas acham que estas são as minhas pautas, porque na verdade são os meus fundamentos. (…)

Não é sobre pautas, é sobre fundamentos.

Ainda a fé, amiges.

*acho interessante deixar esse disclaimer: quando falo da política brasileira me referindo São Paulo é na compreensão de que basicamente a política brasileira norteia-se por lá, o que está longe de ser de meu agrade, muito pelo contrário, todavia, são fatos.

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